Exmos Senhores,
Venho por este meio efectuar uma reclamação e ao mesmo tempo solicitar uma ação correctiva imediata e proporcionalmente ajustada, relativo à circular n° 60 publicada pelo DGRM sob o assunto: Licenças de navegação emitidas pelas entidades competentes espanholas, em virtude da circular não constituir qualquer vínculo legal e estar a ferir de legalidade do decreto-lei nº93/2018, distorcendo por completo os fundamentos legais do legislador.
Mais informo que sob pena de poder vir a encetar um processo contra o Estado Português, venho pelo presente requerer com a maior brevidade possível o reparo necessário em todos os meios considerados necessários e adequados, pois a clara deturpação da legislação em vigor está a ter implicação em ações distorcidas e juridicamente não válidas por parte das autoridades marítimas.
Por mais argumentos que V. Exas possam tentar expor, certamente juridicamente feridos de legalidade, cumpre-me desde logo informar que o artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 93/2018, de 13 de Novembro, estabelece o seguinte:
“Artigo 39.º
Reconhecimento de cartas estrangeiras
1 - As cartas de navegador de recreio ou os documentos equivalentes emitidos pelas administrações dos Estados-membros da UE são automaticamente reconhecidos em Portugal, nos termos e para os efeitos do presente decreto-lei.
2 - Os reconhecimentos previstos no número anterior não carecem da emissão da correspondente carta de navegador de recreio nacional, nos termos do presente decreto-lei.
3 - As cartas de navegador de recreio ou os documentos equivalentes emitidos pelas administrações de países terceiros podem ser reconhecidos pela DGRM desde que a sua emissão tenha como pressuposto o cumprimento de requisitos análogos aos exigidos no presente decreto-lei.
4 - Os pedidos de reconhecimento previstos no número anterior devem ser acompanhados de documentos que permitam aferir as condições aí previstas.
5 - No caso previsto no n.º 3, a DGRM deve emitir a declaração de reconhecimento no prazo de cinco dias, não havendo lugar a emissão da correspondente carta de navegador de recreio nacional, nos termos do presente decreto-lei.
6 - A DGRM cria e mantém atualizada no SNEM uma lista pública das categorias de cartas reconhecidas ao abrigo do n.º 3 e das respectivas entidades emissoras, podendo recorrer a listas oficiais das entidades congéneres dos Estados-membros da UE.”
Facilmente se constata que os n.os 1 e 2 se referem a cartas de navegador de recreio ou documentos equivalentes, emitidos pelos Estados-Membros da UE, e os restantes números daquele artigo referem-se a cartas de navegador de recreio ou documentos equivalentes emitidas por países terceiros, ou seja, todos os países que não sejam Estados-Membros da UE.
Da leitura daquele artigo também ressalta a alusão a “cartas de navegador de recreio ou documentos equivalentes”, ou seja, pretendeu-se abranger os documentos que não tenham correspondência direta com as cartas de navegador de recreio nacionais.
Claramente, o legislador pretendeu atribuir um significado amplo aos títulos de navegabilidade emitidos pelos Estados-Membros da UE.
Neste sentido, a circular n.º 60 quando refere “as acima referidas licenças de navegação espanholas não têm qualquer correspondência com nenhuma das cartas e respectivas competências constantes da legislação nacional em vigor” está a extravasar o sentido do n.º 1 do art. 39.º. De facto, o art. 39.º ao referir “documento equivalente” pretende precisamente abarcar as licenças/cartas que não tenham correspondência directa com os títulos de navegabilidade nacionais.
Aliás, tendo em conta que a UE é formada por mais de duas dezenas de países, e não havendo legislação comunitária sobre o tema, é praticamente impossível querer ou pretender que todos os Estados-Membros emitam cartas de navegador de recreio (ou outros títulos de navegabilidade) com a mesma formação teórico-prática, e com os mesmos limites que as do Estado Português.
E, se o Decreto-Lei não fez constar essa obrigatoriedade, não pode a dita Circular, por si só, pretender proibir a validade sobre as licenças de navegação espanholas.
Efectivamente, tendo em conta o princípio da hierarquia das leis, prevalecerá sempre o disposto no Decreto-Lei.
A eficácia externa e a força legal das “circulares” já foi abordada na doutrina e na jurisprudência por diversas vezes.
Desde logo, a eficácia dos atos legislativos depende da sua publicação no Diário da República (arts. 1.º e 2.º da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro). As circulares não constam do elenco de atos legislação e atos de conteúdo genérico cuja publicação é obrigatória.
Ora, a falta de publicação no jornal oficial retira às circulares o dever do conhecimento dos cidadãos, pelo que carecem, desde logo, de eficácia externa. Donde, a eficácia da circular é meramente interna, assenta sobretudo na cadeia hierárquica.
O que significa que os cidadãos que não concordem com o teor da mesma podem, e devem, questioná-la judicialmente em defesa dos seus direitos.
Tendo em conta a sua eficácia meramente interna, e a falta de força legal das circulares, os cidadãos não têm que lhes obedecer, porquanto devem apenas, e só, obediência à lei em vigor.
Porém, voltando ainda à análise do art. 39.º há uma distinção que ressalta: O n.º 3 do art. 39.º, relativamente às cartas emitidas por países terceiros refere que as mesmas podem ser reconhecidas pela DGRM, “desde que a sua emissão tenha como pressuposto o cumprimento de requisitos análogos aos exigidos no presente decreto-lei”.
Neste caso em concreto, o legislador teve o cuidado de prever duas situações importantes:
1) a probabilidade das cartas serem reconhecidas (ou seja, sempre dependerá da análise da DGRM, ao contrário das cartas emitidas pelos Estados-Membros, que são automaticamente reconhecidas);
2) e que as cartas emitidas por países terceiros tenham como pressuposto, requisitos semelhantes aos exigidos a nível nacional.
Facilmente se constata que, houve uma preocupação em limitar o reconhecimento das cartas de navegador de recreio emitidas em países terceiros, situação que não está associado a toda e qualquer licença/carta emitida pelos Estados-Membros.
Reforço, essa preocupação não está prevista em relação às cartas de navegador de recreio, ou documentos equivalentes, emitidos em Estados-Membros!
Sucede porém que, na Circular n.º 60, no último parágrafo há uma ressalva (assente na alegada garantia de segurança das pessoas, de bens e do meio ambiente marinho) que parece querer justificar a impossibilidade de aceitação das licenças de navegação espanhola.
Novamente se refere que, não pode uma circular extravasar o sentido da lei, nem acrescentar limitações onde a lei não as previu, muito menos acrescentar impedimentos que a lei, claramente, não estabeleceu.
Por último, importa frisar, que enquanto Estado-Membro da UE aplica-se-nos toda a legislação comunitária, a qual proíbe no Tratado de Funcionamento da União Europeia, a livre circulação de serviços (art. 56.º e seguinte do TFUE).
A Circular n.º 60, pese embora não proíba as licenças de navegação espanholas directamente, pode claramente constituir-se como uma violação à legislação comunitária e a legislação nacional ao tentar impedir a nível nacional o usufruto de um serviço adquirido num Estado-Membro, e aceite automaticamente com toda a sua eficácia pela legislação nacional.
Agradeço de antemão a atenção dispensada, brevidade na resposta e brevidade nas acções necessárias de forma a repor a legalidade.
Data de ocorrência: 28 de agosto 2020
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