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O mais recente estudo publicado pela ANACOM revela uma realidade preocupante sobre as competências digitais dos portugueses. Entre os vários indicadores analisados, destaca-se um dado particularmente inquietante: na área de resolução de problemas digitais, Portugal está 12,8 pontos percentuais abaixo da média da União Europeia. Apenas 43,7% da população possui um nível de literacia acima do básico nesta métrica – uma área fundamental para navegar no mundo digital de forma informada, autónoma e transparente.
Claro que, enquanto fundador de uma plataforma digital que tem como missão a resolução de problemas entre consumidores e marcas, este dado não me surpreende. Observamos diariamente as dificuldades que muitos cidadãos enfrentam ao tentar resolver situações aparentemente simples no ambiente digital. Contudo, a questão não é apenas a falta de competências individuais, mas também a ineficácia estrutural dos mecanismos de resolução de problemas públicos.
Os sistemas públicos de resolução de problemas em Portugal são, muitas vezes, sinónimo de burocracia, complexidade e distância das reais necessidades dos cidadãos. A experiência de muitos consumidores com serviços públicos – desde o acesso a plataformas digitais de serviços administrativos até a simples submissão de pedidos ou reclamações – é frequentemente frustrante e pouco intuitiva.
Enquanto isso, no setor privado, há plataformas que têm demonstrado que é possível adotar soluções acessíveis, eficientes e centradas no utilizador. Isso não significa que o setor público deva ser visto como o problema, mas sim como uma área que precisa de renovação urgente, especialmente na forma como utiliza as ferramentas digitais para empoderar os cidadãos.
O mais frustrante é perceber que os sucessivos governos continuam a ignorar as ferramentas e metodologias já disponíveis para melhorar a literacia digital dos cidadãos. O preconceito e a resistência ao setor privado – especialmente a estas plataformas – refletem uma visão ultrapassada, onde inovação e cooperação são encaradas como ameaças, e não como aliados.
O desafio está em perceber que não se trata apenas de digitalizar processos – trata-se de criar soluções humanas e eficazes em ambiente digital. A revolução tecnológica não se concretiza com sistemas que, embora modernos, permanecem herméticos e inacessíveis à maioria. Até porque vivemos numa era em que a digitalização não é uma opção, mas uma inevitabilidade. Serviços públicos e privados estão cada vez mais no digital, deixando muitos cidadãos excluídos e incapazes de realizar tarefas básicas, como pagar contas, marcar consultas médicas ou aceder a benefícios sociais. Este "gap" digital não é apenas um problema social – é também um obstáculo ao desenvolvimento económico do país.
Pior ainda, a ausência de literacia digital tem um impacto profundo na capacidade dos cidadãos em navegar no mundo digital de forma crítica e informada. Falamos aqui de riscos como a desinformação, a falta de privacidade, a vulnerabilidade a fraudes digitais e o desconhecimento sobre direitos online.
Até hoje, os esforços de capacitação têm sido fragmentados, pontuais e pouco eficazes. Programas educacionais esporádicos, campanhas de sensibilização avulsas e a falta de integração da literacia digital no ensino básico e secundário demonstram a ausência de uma visão estratégica de longo prazo. Por sua vez, plataformas como o Portal da Queixa, têm contribuído arduamente para criar um ambiente onde os consumidores podem exercer os seus direitos de forma informada e eficaz. Ao longo dos anos, tornámo-nos uma referência nacional e internacional na ligação entre consumidores e marcas, promovendo não só a resolução de problemas, mas também a capacitação digital dos utilizadores.
Se a digitalização foi uma oportunidade perdida até agora, a Inteligência Artificial (IA) surge como uma nova oportunidade para transformar a realidade da literacia digital em Portugal. A IA tem o potencial de personalizar, democratizar e acelerar o processo de aprendizagem digital, oferecendo soluções adaptadas às necessidades da população. Um exemplo disso foi a recente inovação tecnológica lançada pela Consumers Trust, no âmbito do seu projeto de responsabilidade social #NãoSejasPato: um sistema de pesquisa assistida por IA, disponibilizado de forma totalmente gratuita, que permite a qualquer consumidor pesquisar antes de comprar, promovendo a democratização do acesso à inteligência artificial.
Imagine-se, por exemplo, programas de ensino baseados em IA que sejam adaptados ao nível de literacia digital de cada utilizador, ajustando o ritmo e o conteúdo das lições em função das suas necessidades e dificuldades. Ferramentas interativas podem ajudar idosos a aprender a navegar na internet com confiança ou ensinar crianças a protegerem a sua privacidade online enquanto exploram o mundo digital.
O grande desafio, contudo, não está na tecnologia em si, mas na criação de uma estratégia nacional que priorize a literacia digital como uma prioridade transversal em três pilares fundamentais: educação, trabalho e vida social.
No final do dia, a literacia digital não é um luxo – é uma necessidade básica para a inclusão social e o pleno exercício da cidadania. Continuar a ignorar esta realidade é perpetuar um ciclo de exclusão que penaliza os mais vulneráveis e trava o progresso do país.
Portugal precisa de abraçar o potencial da Inteligência Artificial para reverter o retrocesso na literacia digital e construir uma sociedade mais justa, informada e inclusiva. A pergunta que se coloca não é se estamos preparados para a revolução da IA, mas se seremos capazes de a usar como uma oportunidade para não deixar ninguém para trás.
Resta saber se os decisores políticos terão a inteligência – natural ou artificial – para liderar essa mudança.
Publicado: Jornal de Notícias
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